reencontro
já não sou a mesma pessoa que vi há dez anos, quanto
mais o tempo passa mais entendo o quanto é difícil me reencontrar, mesmo que
isso demore e cada vez que acontece saio mais e mais arrasada. não pense que
tem sido fácil me ignorar por todos esses anos pedindo socorro pelos espelhos,
por vezes dando de cara comigo até no fundo de colheres. essa sensação de me sentir
invadida e inquirida por meus olhos é devastadora. entender que não me conheço
e que sou meu maior algoz me revira o estômago e me faz agonizar. quem dera
derreter, como o açúcar, no fundo das xícaras de chá.
contido
não importa por onde começamos ou se há como rasgar tudo
como um roteiro mal escrito e colar as partes de modo contínuo e que faça algum
sentido, se é que isso importa, pois no fim nada mais é sentido mesmo.
mostre-me que está vivo e me faça sofrer ao invés de gritar de tédio. não há
vítimas aqui, entreguei minha cara a tapas e o corpo aos vermes e antes que
algum deles me tome como morta mostre-me do que é feito, o que é real e feio,
tudo que eu nem queria ver e eu choraria por todos os outros se tivesse
aprendido a chorar por mim.
confissão
quero preencher meus dias com literatura de boa
qualidade, mas sem me preocupar muito com isso. passei anos de minha vida me
prendendo ao fato de escrever algo bom e admirável. hoje vejo que a
simplicidade habita as coisas mais belas que já toquei e como tive e tenho
muitas coisas assim, sei que posso transcrever da maneira mais simples que
conheço, uma vida profunda e repleta da matéria de que sou feita.
ressaca
para dois seres sensíveis e machucados meias palavras não
cabem, então a tarde caiu leve, nos embriagamos com Manoel de Barros e
sorrimos. a noite correu falante, pouco álcool e muita poesia, para dois poetas
o bastante. a madrugada reservou um banho de piscina e a lembrança de tantos
erros, copos vazios e almas cheias. ao amanhecer chuva forte e janelas abertas,
Neruda e Pessoa molhados no chão. palavras encharcadas e inteiras.
baldio
quem é esse homem que brada e berra à procura de redenção e ainda se sente tão preso ao ego? a quem esse mesmo homem pede quando suas tábuas somem, enquanto seu bote afunda? outro dia, observando você dormir entendi quem é esse náufrago que descansa sobre minha cama, entre meus lençóis. compreendi a quem ele recorre quando outras mãos falham e nada mais pode salvá-lo.
quem é esse homem que brada e berra à procura de redenção e ainda se sente tão preso ao ego? a quem esse mesmo homem pede quando suas tábuas somem, enquanto seu bote afunda? outro dia, observando você dormir entendi quem é esse náufrago que descansa sobre minha cama, entre meus lençóis. compreendi a quem ele recorre quando outras mãos falham e nada mais pode salvá-lo.
suor
acordei mais cedo que o de costume, aliás não dormi mais que
duas horas...
nessas fases de pouco sono e literatura transbordando pelos
poros, lembro-me de que matéria somos feitos.
tenho amado você nesses dias. não há porque esconder o
sentimento que salta aos olhos e enriquece as palavras.
¾
revirei as gavetas da escrivaninha hoje, procurando um texto
que jurava ter anotado, mas na procura em algum momento me convenci que não
havia feito. e sem encontrar o que não passava de mera miragem de minhas
lembranças encontrei um retrato seu, um bem pequeno desses três por quatro que
nos mostram exatamente como somos, livres de adornos ou sorrisos mascarados.
esqueci-me do que poderia ter escrito naquele pedaço de papel que não existiu e
sorri, quase me confidenciando algo que sempre soube. que meia dúzia é mesmo
seis, que uma dúzia é dose e que não se troca três por quatro e trocamos.
vapor
senti sua falta de uma maneira que jamais senti. seu
silêncio acompanha-me nos banhos matinais que batizo com seu nome, quanta
ternura posso encontrar num banho morno? sim, pois o que ferve não é a água e o
que fere não é o não dito. o espelho estava embaçado e tirei a toalha que me
envolvia para me ver melhor, nunca vi meus olhos tão opacos como agora.
insônia
não dividi meus segredos, pois repartir tira-me o sono. não
direi desaguei meus engodos e que em algum momento abri meu coração. nunca
achei justo sujar águas claras em falácias pernoitadas. foi-se o tempo que dava
espaço para estrangeiros, que apenas esquentam a cama e na manhã seguinte
abandonam minha morada. mas saiba que me dói ainda a lembrança de vê-lo sair.
foi único que partiu deixando-me suas lágrimas em meus olhos.
paramare
não farão falta as flores de plástico que deixara sobre
o balcão, mas falhou na noite passada. o relógio batia insistente a
melodia que já sabemos de cor. pobre da moça que encontrá-las e enfeitar
com elas o coração. a jardineira daqui não é obstáculo, nem foi colocada
ali como um adorno de janela, amado. é só um lembrete de como tudo é breve
e belo, um suspiro perfumado de vida, paraísos artificiais. não arrancaria
nenhuma delas para você, trazem a essência rara das horas que perco ao regá-las.
tempo que não temos para o agora.
alento
as coisas têm nos afastado, não é querido? o coração está
bem, mas não consigo parar de fumar, o que é ruim. mas o que não é? estou
amando, como sempre... coração vagabundo, como diz Caetano! me divirto com meus
mancos, como sempre e a saudade de você é enorme, tem o dom de me reanimar! meu
texto de Kerouac está aqui, crescendo e crescendo, como um diário de bordo mal
escrito e pouco reverberado. saber de sua vida é uma tábua de salvação, um
arquipélago baldio nessa vastidão de mar revolto! pesa-me a idade e os sorrisos
já estão gastos quase tanto como a pele, não tenho o mesmo visco. ando até meio
aborrecida, pois as coisas, quando convalescemos, se tornam mais lentas e
monótonas. mas não me queixo a vida é gueixa querendo se dar!
inércia
decerto a mansidão do deserto se curve à imensidão das
águas, mas enquanto não, seco. é o calo em desalinho, forma obscura de um tempo
vão. onde não há amar ou fúria, onde se cala a devassidão. esse seu rosto
cálido, descrito em conta de arrimo é só a fuga de um querer pobre que não quer
cura. decreto é a luxúria de se entregar a outros corpos enquanto só se deseja
a solidão.
desilusão
mostrou-me a realidade turva para uma manhã chuvosa,
independente da transa da noite passada, não com você, faço odes poéticas ao
que vivi e se é a isso que se resume toda a histeria e febre humana: "uma
boa e bela foda", que seja! e se ela vier bem acompanhada da ilusão, de
bebida barata e promessas frívolas, melhor ainda! quem já teve o corpo rasgado
não só por falos, mas também por faca afiada não se daria ao luxo do amor puro
e imaculado. faço coro, é boa hora para um café amargo, meu amado!
ainda o café
acusa-me, amor! sim, admito, sou leviana, pueril e me prendo
ao que seja leve e despretensioso. se uma xícara de chá esfria tão rápido e
alguns depois de frios não conservam o sabor e a fragrância, posso ser assim.
não pedirei desculpas por meus erros, ou pelo que me marca única, somos assim
vãos. nada me vale mais que viver, o que me move é lembrar depois. serei uma
velha chata e enquanto isso não acontece, tomo o café quente e amargo que me
serviu a pouco. sua essência ainda permanecerá, pelo menos por algum tempo.
horizontes
sou alucinada, pois admito que há tons e tons. e onde uns
distinguem apenas o branco e o negro, o contraste do papel com as palavras de
poeta qualquer, eu vejo cores. renega o que sente, esse rubor nas vísceras,
essa paixão desesperada que não ousa relatar e faz-se míope. deixo que furem-me
os olhos mas não nego a fúria, dessa que se enxerga vermelho em manchetes de
crimes passionais, amarelo em classificados de domingo e verde do fundo de
amanheceres quadrados dentro de garrafas vazias de bebida.
lamento
quando saí de sua casa, naquele domingo fatídico, as coisas
desabaram sobre de mim, encobrindo parte do que sou e todos os meus passos.
antes do avião alçar voo e me trazer de volta à rotina, os pulmões esvaziaram e
as palavras calaram num só grito, até o fim do fôlego e com o passar dos meses
desisti de chamar. tudo que via era brisa sua vindo em minha direção e
disparando os alarmes de solidão. com o tempo não havia mais vento à espreita
ou esperas furtivas, só há agora esse silêncio aterrador.
despeito
para que serve o amor, afinal? uns diriam que serve para
resgatar almas perdidas e trazer o milagre da auto-aceitação. outros diriam que
serve para inundar os corpos de hormônios, feromônios, suor, odores
desagradáveis e satisfação celular. para tantos outros um amor só serve para
curar outro. a partir de hoje, me entregarei ao mau gosto barato, desses
vendidos pelas putas e suas meias arrastão furadas, em becos escuros e pontas
de rua, afinal nunca duvidei que nasci para as sarjetas.
benzedura
é urgente que se cale a palavra, sim essa que desbota ao sol
do meio-dia da mesma forma que descolora na boca da noite. essa que embolora em
minha língua enquanto a sua não chega entre meus seios. que me tenha em
silêncio, pois ele é bento. e peço que não deixe que as mulheres de Chico
morram em mim, assim como aquele amor que cantou Vandré, o refrão que dizia que
a tristeza não é de amar. os lençóis desarrumados só se vingam das horas de
espera no portão e ambos silenciosos são o retrato desses olhos tristes, mas
não vencidos. o que perdura é o querer, nada além dele vence as escadas da vida
e a cadeira do alpendre que dá acesso à sala. e quanto tempo ainda hei de
esperar para que rompa os meus terreiros livres e veja a saia da nega rodando e
rodando?
pílulas azuis
viver nesses tempos é perigoso para a saúde mental, tenho
muitos conhecidos e o que muda é apenas o tipo do vício, como se houvesse
remédio para se adaptar. dourar pílulas faz pessoas melhores? pensar suavemente
agrada a todos e ser polido é mais que escolha é coerção. o que dizer em
assembléias de condomínio? como abafar os gritos para não acordar seu vizinho?
cada silêncio imposto é mais uma morte que chega sem abalar a ordem pública.
tudo que é óbvio demais e passa batido, qualquer dor ou lacuna pode ser
preenchido por tarjas preta. tenho amigo que desistiu de ter opinião própria,
que chora à noite escondido, perdeu sua libido e faz tratamentos contra a falta
de ereção.
paradoxo
é bem o que era, a liberdade de ter o que quisesse e se
sentir um escravo daquele par de pernas e dos desejos que habitavam entre elas.
não há vilão em história alguma, são pessoas procurando alcançar aquilo que se
perdeu há muito tempo que mal se lembram se existiu realmente. humanos, o mais
humanos possíveis é assim que todos são, com preâmbulos, enredo e notas finais
e talvez um medo de si mesmo ou uma breve insegurança. não existe ninguém cem
por cento seguro, por mais que se profira em palavras, isso é um erro de juventude,
achar que pode contra tudo, inocência.
exceção
e bem dito que pouco faria diferença, se tudo é mesmo em
vão, exceto a dor. já dizia Schopenhauer, _ “Se a nossa existência não tem por
fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo.
Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à
vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada
desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a
regra". sim, e que venham os crentes dizer que é mesmo blasfêmia não
ostentar um deus displicente e sádico, que coloca suas crias à mendigar, se
ferir e se matar a pretexto de aprendizado, aprender pra que? aprender por que?
se a via de regra pode mais quem faz pior. não pedi para ser e mesmo assim sou,
como meus filhos o são e perpetuam a tristeza de meus olhos, tudo é vão, exceto
a dor.
sem conforto
não direi que lhe avisei, não vale a pena espezinhar quem já
está no chão e descobriu a friagem das certezas de não ter nada, de não ser
nada e ainda assim sofrer. nem repetirei fórmulas de felicidade romântica que agradariam
seu coração cansado de tentar amar. nem ao menos sorriria pra você e o
confortaria com um conselho amigo. sabe bem que não sou dessas que enganam, mas
também não seria honesta se não dissesse que me fere vê-lo dessa forma, tão
vencido e entregue ao caos. já passei por isso, meu querido, sei bem o que é a
dor e na carne da gente a chaga é muito maior.
déjà vu
a lembrança que me veio foi da noite que passei em claro,
velando seu sono. os cabelos debruçaram sobre a face branda e por vezes sorria.
ainda me afeta o fato de olhar você dormindo e me pergunto como pode um menino
repousar dentro de um corpo de homem. a respiração era forte, constante e o ar
estava cheio de esporos de Manoel de Barros. sou suspeita, mesmo me deletando
nesse olhar lascivo, já me apaixonei por poetas do século passado, engravidei
de línguas mortas e palavras que já não são ditas. a gestação não termina nunca
e vivo parindo poesia etérea e enganos.
sufrágio
ei, me dê sua mão, ascenda um último cigarro pra mim, quero
ter o gosto de sua boca mais uma vez no filtro e assim jamais me sentirei só,
mesmo estando distante e de olhos tão vidrados. as coisas estão mesmo dando
errado e parece que o refrão das músicas é sempre um clichê, que todo amante é
michê, mas posso dizer que as saias de tule, os batons e os sapatos vermelhos,
assim como os beijos no espelho foram abandonados. é que os votos se foram bem
antes de agora, bem antes de juntar suas coisas e ir embora.
nocaute
não olhe para trás quando estiver estendido, frágil e sangrando
depois de receber mais um golpe baixo de seu adversário e perder outro round.
não pense que poderia ter mudado tudo se tivesse agido diferente, se tivesse
outra estratégia. não, Godot, não seria diferente. o chão é o limite onde não
existe fundo do poço e dramas surreais. tudo é luta contínua, numas se ganha,
noutras se perde, defendendo exatamente a mesma coisa que seu opositor defende
e ambos mal sabem o que é. dito isso, não pense em honra ou em vingança.
erga-se e respire fundo, levante a guarda, pois seja jab ou cruzado, gancho ou
direto, o soco é o padrão mais concreto que conheço.
fugidiço
é esse olhar que trago agora, esse que quer ir à forra, mas
que se devota ao asfalto e o vê de modo tão diferente que nem lhe atinge mais o
negrume e a resiliência. e se me escondo sob a sombra da obediência ou sob a
raia da rendição, dissimulo. não tome como ganha a batalha do porvir, a cor dos
sapatos ou a falta deles confundem o passo do ser oprimido. e assim calado,
tomado de fúria e dúvidas indigentes retoma forças e recorre ao visceral, que é
de luta a realidade vigente.
agonia
nem o folk poderia fazer por mim o que a poesia não faz.
queria voltar à inocência de tenra idade. sinto tanto e com tamanha insistência
esse desejo de esquecer, que quanto mais penso, mais essa mágoa se instala em
meu ser. o sentimento parece tão endurecido e cheguei a achar que era
dormência. quando tantos ruídos se misturam supõe-se silêncio. quem dera eu
lembrasse o que é ter paz, que cantar o desespero já não alivia mais a dor.
nova
e o ciclo da lua que seus olhos seguem, nessa semana não tem luar. permaneço só, como jamais deveria ter deixado de ser. é que me faz falta. as noites perduram insistentes e as madrugadas se tornam cada vez mais frias. não sei o que me comove mais, se são as lembranças de suas falas escassas e arredias ou se é a saudade sua voz grave que ainda teima em chamar meu nome.
sinfonia
esse silêncio me deixa aflita e perdida, soa-me privação,
tortura, uma certa dose de falta de bem querer. não importa o quanto me
castigue, nem o quanto se cale, estarei aqui esperando quando sair disso. por
agora minha serenidade ainda não me abandonou e enquanto ela estiver comigo,
recordar-me-ei apenas de suas palavras amenas e suas composições mais amorosas.
muros
tenho coroado o mundo, e todas as pessoas de meu círculo, com a mesma solidão que me impõe. e ao invés de me curar disso, me jogo cada vez mais nessas trincheiras e me escondo em bunkers impenetráveis que construí. já não sei se é uma tentativa tresloucada de me proteger, ou se é a maneira que encontrei pra acabar comigo de vez. seu argumento é que não me impõe nada e que precisa de seu silêncio assim como eu preciso de sua presença. não sei o que faço comigo, não sei de mais nada. sinto que cheguei na última boneca matrioska.
toque
quebrei o silêncio com mais uma ligação, uma entre uma
dezena nesse último mês, em vão. não quer me atender, eu quis falar com você,
talvez mais que em outros tempos, quando as coisas eram amenas e sorríamos à
toa. vi a expressão mais vazia em mim ao me olhar no espelho. talvez vazia não
seja a palavra, sinto-me um artefato bélico, uma granada pronta para explodir. meus
amigos mais próximos perceberam que eu mudei e para pior, dizem. já fui algoz e
me preocupava menos com meus sentimentos. agora sangro e me preocupo.
engasgo
ontem fui visitar um amigo, doença terminal, talvez cansado
de viver e consciente. ele ainda conseguia sorrir, mesmo sabendo que era grave
e terminal, conseguia fazer piada de sua situação e parecia querer confortar os
que o amavam e estavam à sua volta. Godot, estou aos prantos, hoje pela manhã
ele faleceu, e eu, meu caro, não sei o que dizer, não sei o que dizer... minha
retórica é dos tempos pessimistas, em que ainda havia algo para dizer, mas agora
já não tenho, não mesmo.
velado
há nisso tudo uma tristeza imensa, pois no fundo sabemos que
iremos partir. seja para seguir nossos caminhos, seja para encontrar novos
horizonte, ou até mesmo ir para não mais voltar. pois bem, dito isso, vejo
aquele que um dia me foi importante indo e ver o outro partir é mais que dor. e
perpetro aqui a tristeza maior da despedida última, onde só se pode dar aquele
olhar mareado, o abraço aperta
do que só poderá ser respondido com frieza, pois não haverão
mais respostas. vá meu amigo, sei que para onde vai, ou já foi, não existe
espaço para volta ou arrependimentos, vá livre, pois o coração aqui chora, a
alma berra e nessas horas não há consolo.
pernóstica
é o adjetivo que gosta de usar para me definir, ou para me irritar, por vezes. admito que sou e que ele cabe bem em mim, não sou medrosa com tudo. o medo que alimento é do sentimento que tenho por você. minhas palavras posso usar com orgulho e altivez, elas me levam exatamente onde quero ir e onde quero que as pessoas estejam. não chamaria isso de pedantismo, embora soe um tanto presumido. sim, assumo o peso de minhas faltas, assim como dos excessos. ainda não encontrei o equilíbrio perfeito, nem sei se é o que procuro, mas direi que sigo tentando.
é o adjetivo que gosta de usar para me definir, ou para me irritar, por vezes. admito que sou e que ele cabe bem em mim, não sou medrosa com tudo. o medo que alimento é do sentimento que tenho por você. minhas palavras posso usar com orgulho e altivez, elas me levam exatamente onde quero ir e onde quero que as pessoas estejam. não chamaria isso de pedantismo, embora soe um tanto presumido. sim, assumo o peso de minhas faltas, assim como dos excessos. ainda não encontrei o equilíbrio perfeito, nem sei se é o que procuro, mas direi que sigo tentando.
mouro
ele está perdido em areia movediça, o cavalo que monta é inteiro e arisco e foi batizado pelo tempo. prefere a liberdade à gaiola em que habito, ri de minha loucura, desdenha de mim e diz que tudo é besteira. talvez tenha razão e ainda assim, mesmo se voltando para o deserto silencioso, sigo amando meu mouro, quem dera meu. só queria me livrar de tudo isso. quem sabe, em silêncio, ele cavalgue nas areias de minha ampulheta.
ele está perdido em areia movediça, o cavalo que monta é inteiro e arisco e foi batizado pelo tempo. prefere a liberdade à gaiola em que habito, ri de minha loucura, desdenha de mim e diz que tudo é besteira. talvez tenha razão e ainda assim, mesmo se voltando para o deserto silencioso, sigo amando meu mouro, quem dera meu. só queria me livrar de tudo isso. quem sabe, em silêncio, ele cavalgue nas areias de minha ampulheta.
reminiscências
lembro-me da praia, da primeira vez que pisei na areia, da onda
que pousou sobre meus pés, há muita gente que resolve entrar em sua fantasia,
mas não todos. resolvi abandonar-me como aquela onda , a maré, as inconstâncias
gravitacionais, à mercê da lua e do vento. sim, poderia dizer a você que estou
inundada daquele azul imenso do começo de tudo que está em mim, ou ceder aos
sons que me invadem, dizendo que somos resultado de nossa infância, mas não
tenho saudade da minha, e por vezes me vejo em lugares que nunca fui e me
acompanham pessoas que nunca vi, mas que me sorriem como se fosse amada, me
vejo bem mais velha do que sou realmente, tenho visões distorcidas do que me
rodeia. acho que você não existe, e que quando quer brinca comigo, como um cão
que encontra uma boneca velha sem uso, como podemos perder tanto assim?
pó
há tempos esqueci de dar valor ao que era certo para todo
mundo e voltei-me ao que era correto para mim, mesmo não sendo tão reto e nem
tão meu assim. não sou especial por me afastar dos outros, nem tão pouco por
não me adaptar à meiguice que me pedem. e porque seria especial se nasci como a
maioria, se cresci e vendo o desnecessário e se a poeira de meu fim será breve
como a de todos?
nula
endureci muito depois de ontem, há coisas que não passam em
branco, por mais que eu tente a realidade é essa que vivo, sem floreios, sem
interjeições pacificadoras ou falas heróicas. é o que é, sou o que sou e
expectativas, mesmo que mínimas, são nocivas a qualquer relação, verdadeira ou
não. sucumbi ao tempo que me dediquei aos seus pés e ao seu som, mas não estou
mais disposta e virei as costas, como virei a tudo que já amei um dia.
vínculos? esses você não tem nem quer e eu tenho muitos que também não quero. e
a linha é bem essa: seguimos tendo o que não queremos e desprezando o que
temos, até perdermos mais alguma coisa, mesmo que a afirmativa seja não ter
mais nada.
cacos
não gosto de vasos de vidro, nem de garrafas inteiras, são
como um chamado ao caos, um pedido de quebra e quanto mais me deparo com
rupturas irremediáveis mais amo os cacos, as catarses, mosaicos que se colam
perfeitamente com a realidade torpe que se apresenta. nada é tão belo quanto
observar as pessoas por ângulos diferentes, notar que as inteiras têm tão pouco
a oferecer e as despedaçadas são universos passionais divididos entre a dor, a
esperança e a fúria.
peles
beijou-me uma pinta no seio esquerdo, mordeu-me a do seio direito e se calou quando pousou a boca sobre minhas marcas secretas. é que as facas ferem mais que impressões superficiais e ficam para sempre. sim, pode sorrir quando tocar minhas marcas, mas ao encontrar as cicatrizes sei que haverá silêncio e compaixão.
beijou-me uma pinta no seio esquerdo, mordeu-me a do seio direito e se calou quando pousou a boca sobre minhas marcas secretas. é que as facas ferem mais que impressões superficiais e ficam para sempre. sim, pode sorrir quando tocar minhas marcas, mas ao encontrar as cicatrizes sei que haverá silêncio e compaixão.
cômoda
deveria ater-me apenas ao presente e imperá-lo como os
grandes mestres da calma e passividade, mas não sou religiosa. aprendi a
recitar seu nome quando não está comigo e esse mantra me acalenta por um tempo.
queria ter a sabedoria dos gatos, construir meu espaço seguro e pacientemente
esperar o carinho daqueles que me são gratos apenas pelo que sou. quem sabe
sorrir enquanto durmo manso, com as patas para o ar, sobre a cômoda do quarto,
mesmo sabendo das bardanas e das lagartas que as devoram. mesmo sabendo que a
mão do dono que afaga é a mesma que doutrina.
verbete
poderia reclamar do sofrimento que me causa ao se calar, esmiuçar as perdas que tive, quando me abandonou. sei que nunca foi meu e alguma hora me conforto. ninguém morre por ausência alheia, isso é coisa de romance de século XIX. concordo, está agindo com dignidade me afastando. assim não haverá desculpas ou portas abertas, plano b para uma possível volta. não me fez promessas. certeiro é o silêncio, a melhor das travas, mais eficiente que o verbo inteiro ou meias palavras.
poderia reclamar do sofrimento que me causa ao se calar, esmiuçar as perdas que tive, quando me abandonou. sei que nunca foi meu e alguma hora me conforto. ninguém morre por ausência alheia, isso é coisa de romance de século XIX. concordo, está agindo com dignidade me afastando. assim não haverá desculpas ou portas abertas, plano b para uma possível volta. não me fez promessas. certeiro é o silêncio, a melhor das travas, mais eficiente que o verbo inteiro ou meias palavras.
alvorada
ao olhar-me no espelho de manhã, escovando meus dentes, me
encaro e admito que olhar fundo em mim é difícil, muito difícil. vejo os olhos
de meu pai, o queixo de minha mãe e muita coisa além disso. não há paixões, não
há melancolia, ou qualquer sentimento que não seja angústia. desde cedo, assumi
minha figura de maneira rígida, sem manifestar interesse profundo e até bem
pouco tempo atrás não me conhecia direito. agora, tenho tido a coragem de me
perguntar coisas que jamais ousei tocar.
monalisas
nunca achei que era como os outros, Godot. há algo em você que me irrita profundamente, assim como há uma força de empuxo que me arrasta para seus olhos, sem que eu possa me defender disso. alguns homens têm o péssimo hábito de comparar as mulheres entre si, como se ser mulher fosse algo comum e raso. todos podem ter cópias de Monalisa, podem ser comparadas à Monalisas, serem falsas Monalisas, reza a lenda que a verdadeira está exposta no Louvre, mas acredito que ela está perdida eternamente nos olhos de Leonardo.
nunca achei que era como os outros, Godot. há algo em você que me irrita profundamente, assim como há uma força de empuxo que me arrasta para seus olhos, sem que eu possa me defender disso. alguns homens têm o péssimo hábito de comparar as mulheres entre si, como se ser mulher fosse algo comum e raso. todos podem ter cópias de Monalisa, podem ser comparadas à Monalisas, serem falsas Monalisas, reza a lenda que a verdadeira está exposta no Louvre, mas acredito que ela está perdida eternamente nos olhos de Leonardo.
saldo
posso ser frágil, mas tenho orgulho que está ferido, como esteve tantas vezes enquanto me deixei afligir por esse sentimento. mas não vou me fazer de vítima, ou me vangloriar que superei você, pois em qualquer uma dessas premissas estaria faltando com a verdade. mais que nunca quero ser forte, mais que tudo quero superar esse momento. não precisa se fingir de ausente ou se esconder por trás desse silêncio. sigo agora meu caminho.
polos opostos
parecia evidenciado que somos opostos, mas vejo isso com mais clareza, não somos de jogos e isso deve ter nos afastado. eu procurando a liberdade e a falta de compromisso e você se apegando à velha aliança de Midas que já fracassara há algum tempo. as aparências enganam, na verdade eu sempre honrei os compromissos que assumi até hoje e, por dignidade ou senso, os mantenho livres de minhas inconstâncias, enquanto você não assume vínculos e não admite a possibilidade de que as pessoas ainda possam confessar os sentimentos mais puros, sem estar procurando fugas temporárias da realidade. a única certeza que tenho é que estamos com medo e o medo acaba com quase tudo que não seja ele mesmo.
parecia evidenciado que somos opostos, mas vejo isso com mais clareza, não somos de jogos e isso deve ter nos afastado. eu procurando a liberdade e a falta de compromisso e você se apegando à velha aliança de Midas que já fracassara há algum tempo. as aparências enganam, na verdade eu sempre honrei os compromissos que assumi até hoje e, por dignidade ou senso, os mantenho livres de minhas inconstâncias, enquanto você não assume vínculos e não admite a possibilidade de que as pessoas ainda possam confessar os sentimentos mais puros, sem estar procurando fugas temporárias da realidade. a única certeza que tenho é que estamos com medo e o medo acaba com quase tudo que não seja ele mesmo.
trapo
nunca gostei desses joguinhos de amor, nem dessas armadilhas de paixão, avisei que eu não era boa, avisei que não fui feita para agradar ninguém. ultimamente tenho me rasgado demais, pois tem me colocado mais à prova do que estou acostumada, aliás minha credibilidade só é nula para seus exigentes padrões. ser um embuste sempre custou-me menos que ser verdadeira, apesar disso nunca me privei de me mostrar inteira e nua a quem amo, mas toda lição é válida. e se essa valeu, foi para provar minha teoria de que ninguém ama incondicionalmente, nem mesmo eu.
memória
quem dera encontrasse o segredo suspenso, quase sem ar, o
verbo perfeito desses que se rasga em esquinas passadas e mortas e ainda tão
lembradas e revisitadas. nada que é cotidiano é tão forte quanto o inesperado e
quem dera tivesse sucumbido ao beijo que me deu impune, se é que saímos impunes
de qualquer coisa. quisera eu ter sobrevivido para além dele. não tenho a
palavra perfeita e quem tem só fala uma vez, não fica lapidando a brutalidade
de outras incrustadas no peito ou crucificando as que ficam engastalhadas na
goela seca e inerte. assim, jamais esquecerei da voz de Manoel de Barros, ou da
sua, que ouvi com atenção, naquele dia. desinventar não é mais fácil que
inventar, o berço de um filho que não veio, as gotas da pia do banheiro ou o
mofo que insistia no canto da sala de estar, mas sabemos que esquecer seria bem
menos doído que lembrar.
entrega
as moças de família ficariam quietas, esperariam santas a
sua volta, suportam faltas silenciosas, se movem com delicadeza, como
se não tivessem vontades berrando em cores de Frida Kahlo. usam perfumes finos
e esperam ser seduzidas, como se isso não fosse papel delas. seus narizes
empinados cortam o vento e eu não sou assim. excito você porque não
sou assim e se tudo que me oferece hoje é uma punheta, quero-a de bom
grado, se isso me levar um pouco mais perto de seu corpo e de sua vontade,
toque-se pensando que ainda há desejo aqui. pense em minha boca que tantas
vezes disse o seu nome e com desespero abocanhou-lhe rijo e teso. sim, tenho
saudades, seu lugar ainda é seu por merecimento. não encontrei quem o
substituísse à altura. sou de uma simplicidade burlesca, de uma sagacidade
pagã, há quem me julgue passional e impulsiva, quem disse que eu ligo?
sambinha
se soubesse que chegaria tão cedo, não teria bebido o porre
de vodca dessa madrugada, relendo as suas cartas e não estaria com esse cheiro
de choro amanhecido, nem com esses olhos inchados. não pedi dinheiro algum, nem
sabia onde estava e fiquei esse tempo todo sem notícias. acho que a bebida
afeta mais seus miolos que os meus. não tenho cuidado nem de mim nesses últimos
tempos, então não me venha falar de seu retrato. o telhado está cheio de
goteiras e não tive forças para subir e consertar, mas coloque o vinil do Pixinguinha,
me beije e mate minha fome, juro que depois mato todas as suas.
lira
não há indiferença nesses olhos amanhecidos, enquanto sinto
você por perto, amado. espero que tenha entendido que o que não quero é sofrer
por algo efêmero, mas tudo é. não há dor maior que acordar com isso, pedir
cordas e se jogar no asfalto, como se fosse tudo que temos. e se não soubesse
de nossos lençóis revirados e carregados com nosso cheiro, das garrafas vazias
e dessas marcas na pele, poderia jurar que não há amor. nunca acreditei em contos de fada, ou
histórias da carochinha, o cotidiano não contabiliza ganhos na distância, nem
as queloides que a ilusão acentua. e se tem o coração batido, saiba que o meu
por esperança ou dolo, segue o mesmo ritmo do seu.
concreto
sei que não conseguirei arrancar essa dor que traz, nem
tampouco aliviar essa angústia cimentada em seu peito. a noite é cega e me faz
lembrar do que me disse uma vez sobre a vida ser preta, sobre a vida ser branca
e nesse contexto não há tons de cinza, amado. a metáfora é certeira e sua fala
é exata. somos privados de sanidade quando assumimos o risco de amar, quando
nos entregamos ao desejo. e reitero que somos aqueles lençóis, embriaguez e
nossas marcas. sei que tudo é transitório, mas ainda não me acostumei com isso.
plateia
apeteceu-me, por um tempo, olhar as pessoas como peças
móveis em um tabuleiro, tendo a visão que estavam em seus pequenos casulos
sociais, tecendo seus fios de hipocrisias e medos. nessa época não me considerava
gente e aceitava quase impune meu papel de pequeno e irrelevante observador.
agora sofro por me ver presa nesse mesmo casulo e amarrada com as mesmas
cordas.
reestreia
sim, os antigos personagens com suas experiências bizarras e
passagens invisíveis estão de volta. e são eles os que mais prosperam e
proliferam nessas pequenas chances que dão a mim. as viagens alheias se tornam
auto-biográficas, mas a caneta esferográfica não distingue nada. as grandes
jornadas são feitas no silêncio mais profundo que conheço e que é possível. as
ondas de meu velho rádio de pilha só repetem músicas que me pedem paciência. um
passo de cada vez, depois de tantos, sem pensar que tudo está à beira do mesmo
abismo colossal. as notas destoantes e cacofônicas nascem da simbiose do medo e
do encontro de olhares catatônicos.
ano novo
estou farta das superfícies, por isso fujo dos jantares de
fim de ano, por isso fujo das pessoas que um dia amei. poderia dizer que quero
a solidão, mas é mentira. poderia dizer que quero o silêncio, mas continuaria
mentindo. é que quando estamos sós temos certas coragens que nos faltam em
público, é que ali no silêncio desassossegado, que bem citou Pessoa, todos
estão propensos à verdades afiadas. sabe que me provoca profundidades. vir à tona,
tomar fôlego até o pulmão quase estourar e voltar à lama, ao lodo que só se
acha no fundo. sabe que instiga o pior que há em mim e mesmo que diga: "a
faca é cega", eu digo, amado, meus olhos de pedra conseguem amolá-la, para
furar os outros como bem me ensinou. tenho que expurgar essa personagem que
toma conta de meu cotidiano, ontem passei a noite olhando para ela, que é a
fumaça de meus cigarros, que é minha inspiração e minha expiação. rememoro cada
prego da cruz, porque é isso que dá vida e faz sangrar. e reafirmar que ela não
sou eu não melhora em nada a minha condição de sua escrava. finjo, dissimulo em
febre quase gentil, como se não fosse minha essa dor que toma e tomará tudo que
me é importante. minha pele tem muitas quelóides provocadas por lembranças suas
e não suporto mais. e mesmo rejeitando esse sentimento calmo e nocivo permaneço
alimentando o que machuca e deixa marcas. e nem deveria perder meu tempo nessa
mesma tecla preta do piano. por quantas vezes foi possível repeti que abandonei
aquele estágio dicotômico de amor e asco. e assumo, assumo mil vezes, que trago
aqui esta falha de caráter, uma fuga insana da realidade torpe que rasga todo o
tempo, mas quem disse que consigo renegar isso?