quinta-feira, 17 de maio de 2012

uma lembrança para Godot (em construção)




reencontro

já não sou a mesma pessoa que vi há dez anos, quanto mais o tempo passa mais entendo o quanto é difícil me reencontrar, mesmo que isso demore e cada vez que acontece saio mais e mais arrasada. não pense que tem sido fácil me ignorar por todos esses anos pedindo socorro pelos espelhos, por vezes dando de cara comigo até no fundo de colheres. essa sensação de me sentir invadida e inquirida por meus olhos é devastadora. entender que não me conheço e que sou meu maior algoz me revira o estômago e me faz agonizar. quem dera derreter, como o açúcar, no fundo das xícaras de chá.


contido

não importa por onde começamos ou se há como rasgar tudo como um roteiro mal escrito e colar as partes de modo contínuo e que faça algum sentido, se é que isso importa, pois no fim nada mais é sentido mesmo. mostre-me que está vivo e me faça sofrer ao invés de gritar de tédio. não há vítimas aqui, entreguei minha cara a tapas e o corpo aos vermes e antes que algum deles me tome como morta mostre-me do que é feito, o que é real e feio, tudo que eu nem queria ver e eu choraria por todos os outros se tivesse aprendido a chorar por mim.

confissão

 quero preencher meus dias com literatura de boa qualidade, mas sem me preocupar muito com isso. passei anos de minha vida me prendendo ao fato de escrever algo bom e admirável. hoje vejo que a simplicidade habita as coisas mais belas que já toquei e como tive e tenho muitas coisas assim, sei que posso transcrever da maneira mais simples que conheço, uma vida profunda e repleta da matéria de que sou feita.


ressaca

para dois seres sensíveis e machucados meias palavras não cabem, então a tarde caiu leve, nos embriagamos com Manoel de Barros e sorrimos. a noite correu falante, pouco álcool e muita poesia, para dois poetas o bastante. a madrugada reservou um banho de piscina e a lembrança de tantos erros, copos vazios e almas cheias. ao amanhecer chuva forte e janelas abertas, Neruda e Pessoa molhados no chão. palavras encharcadas e inteiras.


baldio

quem é esse homem que brada e berra à procura de redenção e ainda se sente tão preso ao ego? a quem esse mesmo homem pede quando suas tábuas somem, enquanto seu bote afunda? outro dia, observando você dormir entendi quem é esse náufrago que descansa sobre minha cama, entre meus lençóis. compreendi a quem ele recorre quando outras mãos falham e nada mais pode salvá-lo.


suor

acordei mais cedo que o de costume, aliás não dormi mais que duas horas...
nessas fases de pouco sono e literatura transbordando pelos poros, lembro-me de que matéria somos feitos.
tenho amado você nesses dias. não há porque esconder o sentimento que salta aos olhos e enriquece as palavras.


¾

revirei as gavetas da escrivaninha hoje, procurando um texto que jurava ter anotado, mas na procura em algum momento me convenci que não havia feito. e sem encontrar o que não passava de mera miragem de minhas lembranças encontrei um retrato seu, um bem pequeno desses três por quatro que nos mostram exatamente como somos, livres de adornos ou sorrisos mascarados. esqueci-me do que poderia ter escrito naquele pedaço de papel que não existiu e sorri, quase me confidenciando algo que sempre soube. que meia dúzia é mesmo seis, que uma dúzia é dose e que não se troca três por quatro e trocamos.



vapor

senti sua falta de uma maneira que jamais senti. seu silêncio acompanha-me nos banhos matinais que batizo com seu nome, quanta ternura posso encontrar num banho morno? sim, pois o que ferve não é a água e o que fere não é o não dito. o espelho estava embaçado e tirei a toalha que me envolvia para me ver melhor, nunca vi meus olhos tão opacos como agora.


insônia

não dividi meus segredos, pois repartir tira-me o sono. não direi desaguei meus engodos e que em algum momento abri meu coração. nunca achei justo sujar águas claras em falácias pernoitadas. foi-se o tempo que dava espaço para estrangeiros, que apenas esquentam a cama e na manhã seguinte abandonam minha morada. mas saiba que me dói ainda a lembrança de vê-lo sair. foi único que partiu deixando-me suas lágrimas em meus olhos.


paramare

não farão falta as flores de plástico que deixara sobre o balcão, mas falhou na noite passada. o relógio batia insistente a melodia que já sabemos de cor. pobre da moça que encontrá-las e enfeitar com elas o coração. a jardineira daqui não é obstáculo, nem foi colocada ali como um adorno de janela, amado. é só um lembrete de como tudo é breve e belo, um suspiro perfumado de vida, paraísos artificiais. não arrancaria nenhuma delas para você, trazem a essência rara das horas que perco ao regá-las. tempo que não temos para o agora.


alento


as coisas têm nos afastado, não é querido? o coração está bem, mas não consigo parar de fumar, o que é ruim. mas o que não é? estou amando, como sempre... coração vagabundo, como diz Caetano! me divirto com meus mancos, como sempre e a saudade de você é enorme, tem o dom de me reanimar! meu texto de Kerouac está aqui, crescendo e crescendo, como um diário de bordo mal escrito e pouco reverberado. saber de sua vida é uma tábua de salvação, um arquipélago baldio nessa vastidão de mar revolto! pesa-me a idade e os sorrisos já estão gastos quase tanto como a pele, não tenho o mesmo visco. ando até meio aborrecida, pois as coisas, quando convalescemos, se tornam mais lentas e monótonas. mas não me queixo a vida é gueixa querendo se dar!


inércia

decerto a mansidão do deserto se curve à imensidão das águas, mas enquanto não, seco. é o calo em desalinho, forma obscura de um tempo vão. onde não há amar ou fúria, onde se cala a devassidão. esse seu rosto cálido, descrito em conta de arrimo é só a fuga de um querer pobre que não quer cura. decreto é a luxúria de se entregar a outros corpos enquanto só se deseja a solidão.


desilusão

mostrou-me a realidade turva para uma manhã chuvosa, independente da transa da noite passada, não com você, faço odes poéticas ao que vivi e se é a isso que se resume toda a histeria e febre humana: "uma boa e bela foda", que seja! e se ela vier bem acompanhada da ilusão, de bebida barata e promessas frívolas, melhor ainda! quem já teve o corpo rasgado não só por falos, mas também por faca afiada não se daria ao luxo do amor puro e imaculado. faço coro, é boa hora para um café amargo, meu amado!



ainda o café

acusa-me, amor! sim, admito, sou leviana, pueril e me prendo ao que seja leve e despretensioso. se uma xícara de chá esfria tão rápido e alguns depois de frios não conservam o sabor e a fragrância, posso ser assim. não pedirei desculpas por meus erros, ou pelo que me marca única, somos assim vãos. nada me vale mais que viver, o que me move é lembrar depois. serei uma velha chata e enquanto isso não acontece, tomo o café quente e amargo que me serviu a pouco. sua essência ainda permanecerá, pelo menos por algum tempo.


horizontes

sou alucinada, pois admito que há tons e tons. e onde uns distinguem apenas o branco e o negro, o contraste do papel com as palavras de poeta qualquer, eu vejo cores. renega o que sente, esse rubor nas vísceras, essa paixão desesperada que não ousa relatar e faz-se míope. deixo que furem-me os olhos mas não nego a fúria, dessa que se enxerga vermelho em manchetes de crimes passionais, amarelo em classificados de domingo e verde do fundo de amanheceres quadrados dentro de garrafas vazias de bebida.


lamento

quando saí de sua casa, naquele domingo fatídico, as coisas desabaram sobre de mim, encobrindo parte do que sou e todos os meus passos. antes do avião alçar voo e me trazer de volta à rotina, os pulmões esvaziaram e as palavras calaram num só grito, até o fim do fôlego e com o passar dos meses desisti de chamar. tudo que via era brisa sua vindo em minha direção e disparando os alarmes de solidão. com o tempo não havia mais vento à espreita ou esperas furtivas, só há agora esse silêncio aterrador.


despeito

para que serve o amor, afinal? uns diriam que serve para resgatar almas perdidas e trazer o milagre da auto-aceitação. outros diriam que serve para inundar os corpos de hormônios, feromônios, suor, odores desagradáveis e satisfação celular. para tantos outros um amor só serve para curar outro. a partir de hoje, me entregarei ao mau gosto barato, desses vendidos pelas putas e suas meias arrastão furadas, em becos escuros e pontas de rua, afinal nunca duvidei que nasci para as sarjetas.

benzedura

é urgente que se cale a palavra, sim essa que desbota ao sol do meio-dia da mesma forma que descolora na boca da noite. essa que embolora em minha língua enquanto a sua não chega entre meus seios. que me tenha em silêncio, pois ele é bento. e peço que não deixe que as mulheres de Chico morram em mim, assim como aquele amor que cantou Vandré, o refrão que dizia que a tristeza não é de amar. os lençóis desarrumados só se vingam das horas de espera no portão e ambos silenciosos são o retrato desses olhos tristes, mas não vencidos. o que perdura é o querer, nada além dele vence as escadas da vida e a cadeira do alpendre que dá acesso à sala. e quanto tempo ainda hei de esperar para que rompa os meus terreiros livres e veja a saia da nega rodando e rodando?


pílulas azuis

viver nesses tempos é perigoso para a saúde mental, tenho muitos conhecidos e o que muda é apenas o tipo do vício, como se houvesse remédio para se adaptar. dourar pílulas faz pessoas melhores? pensar suavemente agrada a todos e ser polido é mais que escolha é coerção. o que dizer em assembléias de condomínio? como abafar os gritos para não acordar seu vizinho? cada silêncio imposto é mais uma morte que chega sem abalar a ordem pública. tudo que é óbvio demais e passa batido, qualquer dor ou lacuna pode ser preenchido por tarjas preta. tenho amigo que desistiu de ter opinião própria, que chora à noite escondido, perdeu sua libido e faz tratamentos contra a falta de ereção.


paradoxo

é bem o que era, a liberdade de ter o que quisesse e se sentir um escravo daquele par de pernas e dos desejos que habitavam entre elas. não há vilão em história alguma, são pessoas procurando alcançar aquilo que se perdeu há muito tempo que mal se lembram se existiu realmente. humanos, o mais humanos possíveis é assim que todos são, com preâmbulos, enredo e notas finais e talvez um medo de si mesmo ou uma breve insegurança. não existe ninguém cem por cento seguro, por mais que se profira em palavras, isso é um erro de juventude, achar que pode contra tudo, inocência.


exceção

e bem dito que pouco faria diferença, se tudo é mesmo em vão, exceto a dor. já dizia Schopenhauer, _ “Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra". sim, e que venham os crentes dizer que é mesmo blasfêmia não ostentar um deus displicente e sádico, que coloca suas crias à mendigar, se ferir e se matar a pretexto de aprendizado, aprender pra que? aprender por que? se a via de regra pode mais quem faz pior. não pedi para ser e mesmo assim sou, como meus filhos o são e perpetuam a tristeza de meus olhos, tudo é vão, exceto a dor.


sem conforto

não direi que lhe avisei, não vale a pena espezinhar quem já está no chão e descobriu a friagem das certezas de não ter nada, de não ser nada e ainda assim sofrer. nem repetirei fórmulas de felicidade romântica que agradariam seu coração cansado de tentar amar. nem ao menos sorriria pra você e o confortaria com um conselho amigo. sabe bem que não sou dessas que enganam, mas também não seria honesta se não dissesse que me fere vê-lo dessa forma, tão vencido e entregue ao caos. já passei por isso, meu querido, sei bem o que é a dor e na carne da gente a chaga é muito maior.


déjà vu

a lembrança que me veio foi da noite que passei em claro, velando seu sono. os cabelos debruçaram sobre a face branda e por vezes sorria. ainda me afeta o fato de olhar você dormindo e me pergunto como pode um menino repousar dentro de um corpo de homem. a respiração era forte, constante e o ar estava cheio de esporos de Manoel de Barros. sou suspeita, mesmo me deletando nesse olhar lascivo, já me apaixonei por poetas do século passado, engravidei de línguas mortas e palavras que já não são ditas. a gestação não termina nunca e vivo parindo poesia etérea e enganos.

sufrágio

ei, me dê sua mão, ascenda um último cigarro pra mim, quero ter o gosto de sua boca mais uma vez no filtro e assim jamais me sentirei só, mesmo estando distante e de olhos tão vidrados. as coisas estão mesmo dando errado e parece que o refrão das músicas é sempre um clichê, que todo amante é michê, mas posso dizer que as saias de tule, os batons e os sapatos vermelhos, assim como os beijos no espelho foram abandonados. é que os votos se foram bem antes de agora, bem antes de juntar suas coisas e ir embora.

nocaute

não olhe para trás quando estiver estendido, frágil e sangrando depois de receber mais um golpe baixo de seu adversário e perder outro round. não pense que poderia ter mudado tudo se tivesse agido diferente, se tivesse outra estratégia. não, Godot, não seria diferente. o chão é o limite onde não existe fundo do poço e dramas surreais. tudo é luta contínua, numas se ganha, noutras se perde, defendendo exatamente a mesma coisa que seu opositor defende e ambos mal sabem o que é. dito isso, não pense em honra ou em vingança. erga-se e respire fundo, levante a guarda, pois seja jab ou cruzado, gancho ou direto, o soco é o padrão mais concreto que conheço.


fugidiço

é esse olhar que trago agora, esse que quer ir à forra, mas que se devota ao asfalto e o vê de modo tão diferente que nem lhe atinge mais o negrume e a resiliência. e se me escondo sob a sombra da obediência ou sob a raia da rendição, dissimulo. não tome como ganha a batalha do porvir, a cor dos sapatos ou a falta deles confundem o passo do ser oprimido. e assim calado, tomado de fúria e dúvidas indigentes retoma forças e recorre ao visceral, que é de luta a realidade vigente.



agonia

nem o folk poderia fazer por mim o que a poesia não faz. queria voltar à inocência de tenra idade. sinto tanto e com tamanha insistência esse desejo de esquecer, que quanto mais penso, mais essa mágoa se instala em meu ser. o sentimento parece tão endurecido e cheguei a achar que era dormência. quando tantos ruídos se misturam supõe-se silêncio. quem dera eu lembrasse o que é ter paz, que cantar o desespero já não alivia mais a dor.

nova

e o ciclo da lua que seus olhos seguem, nessa semana não tem luar. permaneço só, como jamais deveria ter deixado de ser. é que me faz falta. as noites perduram insistentes e as madrugadas se tornam cada vez mais frias. não sei o que me comove mais, se são as lembranças de suas falas escassas e arredias ou se é a saudade sua voz grave que ainda teima em chamar meu nome.

sinfonia

esse silêncio me deixa aflita e perdida, soa-me privação, tortura, uma certa dose de falta de bem querer. não importa o quanto me castigue, nem o quanto se cale, estarei aqui esperando quando sair disso. por agora minha serenidade ainda não me abandonou e enquanto ela estiver comigo, recordar-me-ei apenas de suas palavras amenas e suas composições mais amorosas.

muros

tenho coroado o mundo, e todas as pessoas de meu círculo, com a mesma solidão que me impõe. e ao invés de me curar disso, me jogo cada vez mais nessas trincheiras e me escondo em bunkers impenetráveis que construí. já não sei se é uma tentativa tresloucada de me proteger, ou se é a maneira que encontrei pra acabar comigo de vez. seu argumento é que não me impõe nada e que precisa de seu silêncio assim como eu preciso de sua presença. não sei o que faço comigo, não sei de mais nada. sinto que cheguei na última boneca matrioska. 


toque

quebrei o silêncio com mais uma ligação, uma entre uma dezena nesse último mês, em vão. não quer me atender, eu quis falar com você, talvez mais que em outros tempos, quando as coisas eram amenas e sorríamos à toa. vi a expressão mais vazia em mim ao me olhar no espelho. talvez vazia não seja a palavra, sinto-me um artefato bélico, uma granada pronta para explodir. meus amigos mais próximos perceberam que eu mudei e para pior, dizem. já fui algoz e me preocupava menos com meus sentimentos. agora sangro e me preocupo.

engasgo

ontem fui visitar um amigo, doença terminal, talvez cansado de viver e consciente. ele ainda conseguia sorrir, mesmo sabendo que era grave e terminal, conseguia fazer piada de sua situação e parecia querer confortar os que o amavam e estavam à sua volta. Godot, estou aos prantos, hoje pela manhã ele faleceu, e eu, meu caro, não sei o que dizer, não sei o que dizer... minha retórica é dos tempos pessimistas, em que ainda havia algo para dizer, mas agora já não tenho, não mesmo.

velado

há nisso tudo uma tristeza imensa, pois no fundo sabemos que iremos partir. seja para seguir nossos caminhos, seja para encontrar novos horizonte, ou até mesmo ir para não mais voltar. pois bem, dito isso, vejo aquele que um dia me foi importante indo e ver o outro partir é mais que dor. e perpetro aqui a tristeza maior da despedida última, onde só se pode dar aquele olhar mareado, o abraço aperta
do que só poderá ser respondido com frieza, pois não haverão mais respostas. vá meu amigo, sei que para onde vai, ou já foi, não existe espaço para volta ou arrependimentos, vá livre, pois o coração aqui chora, a alma berra e nessas horas não há consolo.

pernóstica

é o adjetivo que gosta de usar para me definir, ou para me irritar, por vezes. admito que sou e que ele cabe bem em mim, não sou medrosa com tudo. o medo que alimento é do sentimento que tenho por você. minhas palavras posso usar com orgulho e altivez, elas me levam exatamente onde quero ir e onde quero que as pessoas estejam. não chamaria isso de pedantismo, embora soe um tanto presumido. sim, assumo o peso de minhas faltas, assim como dos excessos. ainda não encontrei o equilíbrio perfeito, nem sei se é o que procuro, mas direi que sigo tentando.


mouro

ele está perdido em areia movediça, o cavalo que monta é inteiro e arisco e foi batizado pelo tempo. prefere a liberdade à gaiola em que habito, ri de minha loucura, desdenha de mim e diz que tudo é besteira. talvez tenha razão e ainda assim, mesmo se voltando para o deserto silencioso, sigo amando meu mouro, quem dera meu. só queria me livrar de tudo isso. quem sabe, em silêncio, ele cavalgue nas areias de minha ampulheta.

reminiscências

lembro-me da praia, da primeira vez que pisei na areia, da onda que pousou sobre meus pés, há muita gente que resolve entrar em sua fantasia, mas não todos. resolvi abandonar-me como aquela onda , a maré, as inconstâncias gravitacionais, à mercê da lua e do vento. sim, poderia dizer a você que estou inundada daquele azul imenso do começo de tudo que está em mim, ou ceder aos sons que me invadem, dizendo que somos resultado de nossa infância, mas não tenho saudade da minha, e por vezes me vejo em lugares que nunca fui e me acompanham pessoas que nunca vi, mas que me sorriem como se fosse amada, me vejo bem mais velha do que sou realmente, tenho visões distorcidas do que me rodeia. acho que você não existe, e que quando quer brinca comigo, como um cão que encontra uma boneca velha sem uso, como podemos perder tanto assim?



há tempos esqueci de dar valor ao que era certo para todo mundo e voltei-me ao que era correto para mim, mesmo não sendo tão reto e nem tão meu assim. não sou especial por me afastar dos outros, nem tão pouco por não me adaptar à meiguice que me pedem. e porque seria especial se nasci como a maioria, se cresci e vendo o desnecessário e se a poeira de meu fim será breve como a de todos?


nula

endureci muito depois de ontem, há coisas que não passam em branco, por mais que eu tente a realidade é essa que vivo, sem floreios, sem interjeições pacificadoras ou falas heróicas. é o que é, sou o que sou e expectativas, mesmo que mínimas, são nocivas a qualquer relação, verdadeira ou não. sucumbi ao tempo que me dediquei aos seus pés e ao seu som, mas não estou mais disposta e virei as costas, como virei a tudo que já amei um dia. vínculos? esses você não tem nem quer e eu tenho muitos que também não quero. e a linha é bem essa: seguimos tendo o que não queremos e desprezando o que temos, até perdermos mais alguma coisa, mesmo que a afirmativa seja não ter mais nada.

cacos

não gosto de vasos de vidro, nem de garrafas inteiras, são como um chamado ao caos, um pedido de quebra e quanto mais me deparo com rupturas irremediáveis mais amo os cacos, as catarses, mosaicos que se colam perfeitamente com a realidade torpe que se apresenta. nada é tão belo quanto observar as pessoas por ângulos diferentes, notar que as inteiras têm tão pouco a oferecer e as despedaçadas são universos passionais divididos entre a dor, a esperança e a fúria.

peles

beijou-me uma pinta no seio esquerdo, mordeu-me a do seio direito e se calou quando pousou a boca sobre minhas marcas secretas. é que as facas ferem mais que impressões superficiais e ficam para sempre. sim, pode sorrir quando tocar minhas marcas, mas ao encontrar as cicatrizes sei que haverá silêncio e compaixão.

cômoda

deveria ater-me apenas ao presente e imperá-lo como os grandes mestres da calma e passividade, mas não sou religiosa. aprendi a recitar seu nome quando não está comigo e esse mantra me acalenta por um tempo. queria ter a sabedoria dos gatos, construir meu espaço seguro e pacientemente esperar o carinho daqueles que me são gratos apenas pelo que sou. quem sabe sorrir enquanto durmo manso, com as patas para o ar, sobre a cômoda do quarto, mesmo sabendo das bardanas e das lagartas que as devoram. mesmo sabendo que a mão do dono que afaga é a mesma que doutrina.

verbete

poderia reclamar do sofrimento que me causa ao se calar, esmiuçar as perdas que tive, quando me abandonou. sei que nunca foi meu e alguma hora me conforto. ninguém morre por ausência alheia, isso é coisa de romance de século XIX. concordo, está agindo com dignidade me afastando. assim não haverá desculpas ou portas abertas, plano b para uma possível volta. não me fez promessas. certeiro é o silêncio, a melhor das travas, mais eficiente que o verbo inteiro ou meias palavras.




alvorada

ao olhar-me no espelho de manhã, escovando meus dentes, me encaro e admito que olhar fundo em mim é difícil, muito difícil. vejo os olhos de meu pai, o queixo de minha mãe e muita coisa além disso. não há paixões, não há melancolia, ou qualquer sentimento que não seja angústia. desde cedo, assumi minha figura de maneira rígida, sem manifestar interesse profundo e até bem pouco tempo atrás não me conhecia direito. agora, tenho tido a coragem de me perguntar coisas que jamais ousei tocar.

monalisas

nunca achei que era como os outros, Godot. há algo em você que me irrita profundamente, assim como há uma força de empuxo que me arrasta para seus olhos, sem que eu possa me defender disso. alguns homens têm o péssimo hábito de comparar as mulheres entre si, como se ser mulher fosse algo comum e raso. todos podem ter cópias de Monalisa, podem ser comparadas à Monalisas, serem falsas Monalisas, reza a lenda que a verdadeira está exposta no Louvre, mas acredito que ela está perdida eternamente nos olhos de Leonardo. 


saldo

posso ser frágil, mas tenho orgulho que está ferido, como esteve tantas vezes enquanto me deixei afligir por esse sentimento. mas não vou me fazer de vítima, ou me vangloriar que superei você, pois em qualquer uma dessas premissas estaria faltando com a verdade. mais que nunca quero ser forte, mais que tudo quero superar esse momento. não precisa se fingir de ausente ou se esconder por trás desse silêncio. sigo agora meu caminho.


polos opostos

parecia evidenciado que somos opostos, mas vejo isso com mais clareza, não somos de jogos e isso deve ter nos afastado. eu procurando a liberdade e a falta de compromisso e você se apegando à velha aliança de Midas que já fracassara há algum tempo. as aparências enganam, na verdade eu sempre honrei os compromissos que assumi até hoje e, por dignidade ou senso, os mantenho livres de minhas inconstâncias, enquanto você não assume vínculos e não admite a possibilidade de que as pessoas ainda possam confessar os sentimentos mais puros, sem estar procurando fugas temporárias da realidade. a única certeza que tenho é que estamos com medo e o medo acaba com quase tudo que não seja ele mesmo.


trapo

nunca gostei desses joguinhos de amor, nem dessas armadilhas de paixão, avisei que eu não era boa, avisei que não fui feita para agradar ninguém. ultimamente tenho me rasgado demais, pois tem me colocado mais à prova do que estou acostumada, aliás minha credibilidade só é nula para seus exigentes padrões. ser um embuste sempre custou-me menos que ser verdadeira, apesar disso nunca me privei de me mostrar inteira e nua a quem amo, mas toda lição é válida. e se essa valeu, foi para provar minha teoria de que ninguém ama incondicionalmente, nem mesmo eu.


memória

quem dera encontrasse o segredo suspenso, quase sem ar, o verbo perfeito desses que se rasga em esquinas passadas e mortas e ainda tão lembradas e revisitadas. nada que é cotidiano é tão forte quanto o inesperado e quem dera tivesse sucumbido ao beijo que me deu impune, se é que saímos impunes de qualquer coisa. quisera eu ter sobrevivido para além dele. não tenho a palavra perfeita e quem tem só fala uma vez, não fica lapidando a brutalidade de outras incrustadas no peito ou crucificando as que ficam engastalhadas na goela seca e inerte. assim, jamais esquecerei da voz de Manoel de Barros, ou da sua, que ouvi com atenção, naquele dia. desinventar não é mais fácil que inventar, o berço de um filho que não veio, as gotas da pia do banheiro ou o mofo que insistia no canto da sala de estar, mas sabemos que esquecer seria bem menos doído que lembrar.

entrega
as moças de família ficariam quietas, esperariam santas a sua volta, suportam faltas silenciosas, se movem com delicadeza, como se não tivessem vontades berrando em cores de Frida Kahlo. usam perfumes finos e esperam ser seduzidas, como se isso não fosse papel delas. seus narizes empinados cortam o vento e eu não sou assim. excito você porque não sou assim e se tudo que me oferece hoje é uma punheta, quero-a de bom grado, se isso me levar um pouco mais perto de seu corpo e de sua vontade, toque-se pensando que ainda há desejo aqui. pense em minha boca que tantas vezes disse o seu nome e com desespero abocanhou-lhe rijo e teso. sim, tenho saudades, seu lugar ainda é seu por merecimento. não encontrei quem o substituísse à altura. sou de uma simplicidade burlesca, de uma sagacidade pagã, há quem me julgue passional e impulsiva, quem disse que eu ligo?

sambinha

se soubesse que chegaria tão cedo, não teria bebido o porre de vodca dessa madrugada, relendo as suas cartas e não estaria com esse cheiro de choro amanhecido, nem com esses olhos inchados. não pedi dinheiro algum, nem sabia onde estava e fiquei esse tempo todo sem notícias. acho que a bebida afeta mais seus miolos que os meus. não tenho cuidado nem de mim nesses últimos tempos, então não me venha falar de seu retrato. o telhado está cheio de goteiras e não tive forças para subir e consertar, mas coloque o vinil do Pixinguinha, me beije e mate minha fome, juro que depois mato todas as suas.


lira

não há indiferença nesses olhos amanhecidos, enquanto sinto você por perto, amado. espero que tenha entendido que o que não quero é sofrer por algo efêmero, mas tudo é. não há dor maior que acordar com isso, pedir cordas e se jogar no asfalto, como se fosse tudo que temos. e se não soubesse de nossos lençóis revirados e carregados com nosso cheiro, das garrafas vazias e dessas marcas na pele, poderia jurar que não há amor.  nunca acreditei em contos de fada, ou histórias da carochinha, o cotidiano não contabiliza ganhos na distância, nem as queloides que a ilusão acentua. e se tem o coração batido, saiba que o meu por esperança ou dolo, segue o mesmo ritmo do seu.


concreto

sei que não conseguirei arrancar essa dor que traz, nem tampouco aliviar essa angústia cimentada em seu peito. a noite é cega e me faz lembrar do que me disse uma vez sobre a vida ser preta, sobre a vida ser branca e nesse contexto não há tons de cinza, amado. a metáfora é certeira e sua fala é exata. somos privados de sanidade quando assumimos o risco de amar, quando nos entregamos ao desejo. e reitero que somos aqueles lençóis, embriaguez e nossas marcas. sei que tudo é transitório, mas ainda não me acostumei com isso.

plateia

apeteceu-me, por um tempo, olhar as pessoas como peças móveis em um tabuleiro, tendo a visão que estavam em seus pequenos casulos sociais, tecendo seus fios de hipocrisias e medos. nessa época não me considerava gente e aceitava quase impune meu papel de pequeno e irrelevante observador. agora sofro por me ver presa nesse mesmo casulo e amarrada com as mesmas cordas.





reestreia

sim, os antigos personagens com suas experiências bizarras e passagens invisíveis estão de volta. e são eles os que mais prosperam e proliferam nessas pequenas chances que dão a mim. as viagens alheias se tornam auto-biográficas, mas a caneta esferográfica não distingue nada. as grandes jornadas são feitas no silêncio mais profundo que conheço e que é possível. as ondas de meu velho rádio de pilha só repetem músicas que me pedem paciência. um passo de cada vez, depois de tantos, sem pensar que tudo está à beira do mesmo abismo colossal. as notas destoantes e cacofônicas nascem da simbiose do medo e do encontro de olhares catatônicos.

ano novo

estou farta das superfícies, por isso fujo dos jantares de fim de ano, por isso fujo das pessoas que um dia amei. poderia dizer que quero a solidão, mas é mentira. poderia dizer que quero o silêncio, mas continuaria mentindo. é que quando estamos sós temos certas coragens que nos faltam em público, é que ali no silêncio desassossegado, que bem citou Pessoa, todos estão propensos à verdades afiadas. sabe que me provoca profundidades. vir à tona, tomar fôlego até o pulmão quase estourar e voltar à lama, ao lodo que só se acha no fundo. sabe que instiga o pior que há em mim e mesmo que diga: "a faca é cega", eu digo, amado, meus olhos de pedra conseguem amolá-la, para furar os outros como bem me ensinou. tenho que expurgar essa personagem que toma conta de meu cotidiano, ontem passei a noite olhando para ela, que é a fumaça de meus cigarros, que é minha inspiração e minha expiação. rememoro cada prego da cruz, porque é isso que dá vida e faz sangrar. e reafirmar que ela não sou eu não melhora em nada a minha condição de sua escrava. finjo, dissimulo em febre quase gentil, como se não fosse minha essa dor que toma e tomará tudo que me é importante. minha pele tem muitas quelóides provocadas por lembranças suas e não suporto mais. e mesmo rejeitando esse sentimento calmo e nocivo permaneço alimentando o que machuca e deixa marcas. e nem deveria perder meu tempo nessa mesma tecla preta do piano. por quantas vezes foi possível repeti que abandonei aquele estágio dicotômico de amor e asco. e assumo, assumo mil vezes, que trago aqui esta falha de caráter, uma fuga insana da realidade torpe que rasga todo o tempo, mas quem disse que consigo renegar isso?